Amadeu Garrido
O pão básico e a diversão sustentam os piores governos. É o caso do Brasil atual. A diferença está em que, na velha Roma, a diversão era propiciada pelos próprios governos. O Coliseu reunia plateia de até 25 mil pessoas, ansiosas pelos resultados mais dramáticos para os lutadores. Uma plateia digna de um atrativo jogo de futebol de nossos dias. A diversão atual, que as estratégias militares enquadrariam como "diversionismo" (falsidades que induzem a erro o inimigo), fica a cargo dos monopólios de publicidade e comunicação, que desenvolvem as manobras de grande utilidade para os poderosos que deixam de enfrentar os problemas nevrálgicos da nação.
O Brasil é o segundo país do mundo a aplaudir a franquia UFC. Gladiadores modernos, ainda que sem gláudios e sob efeitos que mais de dois milênios de civilização os tornaram mais amenos, já que não se contempla a morte do adversário como grande objetivo dos aplausos, porém não menos agressivos e repugnantes a consciências minimamente estruturadas.
Muitos adeptos dessa selvageria parecem ter adquirido algo dessa percepção humanística com a última lesão do brasileiro Anderson Silva, em ato de violência grotesco que invadiu nossos lares alta madrugada, em que nossas esposas, filhas, filhos e netos permaneceram em vigília para presenciar o grotesco na telinha. Não bastassem as violências que por ela desfilam todos os dias, a gerar uma população neurótica e medrosa.
Democracia é liberdade com limites. Limites que correspondem a valores da própria democracia. E que estão descritos na Constituição do país. Nossa Constituição elegeu um estado de direito democrático, fundado em preciosos valores descritos em seu texto. Respeito à dignidade humana, à vida e à integridade física, à solidariedade entre as pessoas, o fim da vida social fulcrado na felicidade, a solução pacífica dos conflitos etc. Direta ou indiretamente, esses e outros valores fundamentais restam abalados pela deplorável prática comentada, que nada tem de esportiva.
Os gladiadores eram os capturados nas guerras, escravos e condenados criminalmente. Para aumento de seu número, à época dos imperadores Cláudio I, Calígula e Nero, os réus apenados pelas culpas mais leves eram remetidos ao Coliseu. Hoje, são os integrantes da classe social menos favorecida que vêem na inserção nesse tipo de espetáculo o único modo de escapar de um futuro de agruras. Pouco importa se a carregar lesões irreversíveis, comprometedoras da qualidade de vida, desde que o dinheiro para se ter acesso aos bens materiais de uma sociedade de consumo, e de demanda reprimida pela escassez de recursos financeiros e bem distribuídos, venha para o bolso.
A um exame perfunctório dos aspectos constitucionais do fenômeno, considero aqueles valores arranhados. Portanto, estamos diante de uma conduta ilícita, desde o ato de agressão dos contendores até a cumplicidade de seus promotores e dos órgãos de imprensa que os expõem a milhares de pessoas.
Dizer que a ofensa a princípios pedagógicos e à formação cultural de nosso povo é acentuar o óbvio ululante. Num país tomado pela violência e criminalidade, organizada e desorganizada, em que deveríamos somar todos os esforços para disseminar os preceitos da convivência harmônica e solidária, salta aos olhos o caráter ruinoso dessa propagação e incitamento ao conflito físico e bárbaro.
À Igreja cabe um importante papel na erradicação dessas monstruosidades. Os combates romanos só começaram a arrefecer com a cristianização do império sob Constantino I, no ano 325 da era cristã, porém só foram definitivamente suprimidos quase um século depois, graças aos esforços do Papa Santo Inocêncio junto às autoridades temporais de Roma. Inegavelmente, vitória e importante passo evolutivo no processo civilizatório do homem.
Está na hora de o povo brasileiro, a imprensa, as instituições, principalmente, as encarregadas de zelar por nossos fundamentos constitucionais, como o Ministério Público Federal e os legisladores, examinar à luz de espírito crítico e imparcial essa esdruxularia e, se necessário, submetê-la ao exame do Supremo Tribunal Federal, em arguição de descumprimento de preceitos fundamentais.
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*Amadeu Garrido de Paula é advogado.
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