quinta-feira, 24 de abril de 2014

As brechas da nova Lei Seca

Euro Bento Maciel Filho*

O trânsito brasileiro é um dos mais violentos do mundo. As estatísticas são alarmantes e causam, de fato, enorme preocupação. Em 1997, com a publicação da Lei n. 9.503/97, que instituiu o novo Código de Trânsito Brasileiro (CTB), a sociedade vivenciou um período de esperança, já que todos acreditaram que, a partir do novo código, o brasileiro passasse a ser mais educado no trânsito.

Nesse ponto, é relevante mencionar que o novo Código teve o grande mérito de prever, pela primeira vez, os chamados “crimes de trânsito”. Até então, as condutas delitivas praticadas na condução de um veículo automotor ou eram punidas segundo as regras do Código Penal ou, então, eram tratadas como meras contravenções penais.

Porém, com o passar dos anos, a sociedade percebeu que a previsão dos “crimes de trânsito” não surtiu o efeito desejado. Com efeito, quiçá por conta da falta de uma fiscalização mais efetiva ou em virtude das evidentes deficiências no processo de formação dos motoristas, as nossas tristes estatísticas de mortes e feridos no trânsito só aumentaram.

Mais de uma década após a publicação do CTB, o crime de embriaguez ao volante (artigo 306, do CTB) foi escolhido como o grande vilão da história. Inúmeros foram os projetos de lei dedicados a agravar a punição ao cidadão que conduzisse veículo automotor sob o efeito de álcool. É bem verdade que muitos acidentes de trânsito estão relacionados ao consumo de bebidas alcóolicas, porém, tal fato não afasta a desídia estatal no que diz respeito à educação do motorista e à prevenção de acidentes. A questão do “beber e dirigir” é cultural. A mudança de comportamento do motorista depende muito mais de (re)educação do que de leis cada vez mais severas.

Contudo, acreditando que a severidade da lei seria suficiente para alterar o panorama das nossas tristes estatísticas, em 2008, sob o bordão da “tolerância zero à embriaguez ao volante”, foi publicada a chamada “primeira Lei Seca” (Lei n. 11.705/2008), que modificou a redação original do artigo 306, do CTB, e tentou conferir ao motorista “embriagado” um tratamento penal mais severo. Entretanto, devido a erros crassos na sua redação, a nova lei demonstrou-se um fiasco na prática.

Explica-se: o crime de embriaguez ao volante era, até então, tipificado como “conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”. Ou seja, era um tipo penal classificado como de “perigo concreto”, vale dizer, não bastava a mera prática da conduta em si, era preciso provar o perigo na situação fática em que se encontrava o agente (isto é, o crime só existiria se restasse provado que a “influência de álcool” no caso específico fosse capaz de expor terceiros a um “dano potencial”, independentemente do teor alcoólico apurado).

A nova lei, por sua vez, alterou o artigo 306, do CTB, nele incluindo uma nova circunstância elementar, de cunho objetivo e bem determinado, vale dizer, uma certa e determinada concentração de álcool por litro de sangue.

Assim, do dia para a noite, a tipificação do crime previsto no artigo 306, do CTB, ficou condicionada à apuração objetiva de que o condutor do veículo apresentasse, no mínimo, “seis decigramas” de álcool por litro de sangue ou, quando se tratasse de “teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro)”, que a “concentração de álcool (fosse) igual ou superior a três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões”. Ou seja, para a caracterização do tipo penal, bastaria apenas alcançar o “número mágico” previsto no tipo penal.

Ocorre que, justamente em razão daquelas novas circunstâncias elementares, de caráter eminentemente objetivo, quase matemático, a Lei 11.705/2008, que deveria servir como principal instrumento para coibir a embriaguez ao volante, acabou criando um caminho fácil para a impunidade.

Isso porque, como consequência lógica do direito constitucional do acusado/investigado ao silêncio, é certo que “ninguém está obrigado a produzir prova conta si mesmo” (nemo tenetur se detegere). Sendo assim, como, então, compelir alguém a efetuar o teste do bafômetro ou o exame de sangue?

A Lei 11.705/2008, recebida com tanto entusiasmo pela sociedade, acabou representando um verdadeiro retrocesso, um “tiro no pé”. Bastava ao condutor se negar a realizar qualquer tipo de exame que, por mais embriagado que ele estivesse, o crime não ficaria caracterizado.  Aliás, ainda sob a égide da Lei 11.705/2008, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o crime de embriaguez ao volante só poderia ser aferido e caracterizado a partir da realização de apenas dois exames bem específicos, quais sejam, ou o exame de sangue ou o teste do bafômetro.

Diante da ridícula situação criada pela Lei 11.705/2008, não durou muito para que o legislador penal percebesse que uma nova lei penal era mesmo necessária, tudo para assim tornar mais rigorosa a apuração e a constatação da embriaguez ao volante. Nesse contexto, portanto, é que foi publicada a Lei 12.760/2012, a chamada “segunda Lei Seca”.

A nova lei, que entrou em vigor no dia 20 de dezembro de 2012, inseriu importantes modificações no artigo 306, do CTB. Em primeiro lugar, excluiu docaput qualquer menção à concentração de álcool por litro de sangue/álcool por litro de ar alveolar, assim deixando claro que a caracterização da embriaguez ao volante não dependeria mais, apenas, da apuração objetiva de uma taxa de alcoolemia qualquer.

Aliás, o legislador penal, desta vez, foi bem claro ao prever, no parágrafo primeiro do artigo 306, que a constatação da embriaguez ao volante poderia se dar ou pela “concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar”, ou, então, por “sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração de capacidade psicomotora”.

Com isso, o Poder Público não estava mais “atrelado” apenas aos exames laboratoriais e ao bafômetro para caracterizar o tipo penal. Vale dizer, o ato de simplesmente se negar a realizar os preditos exames não era mais uma estratégia inteligente, já que a embriaguez poderia ser constatada, também, por “sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração de capacidade psicomotora”.

E, conforme estabelecido pelo parágrafo segundo do novo artigo 306, do CTB, tais “sinais” poderiam ser aferidos a partir da realização de “teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova”.

É importante acrescentar que a Lei 12.760/2012 recebeu muitas críticas porque, ao permitir que qualquer meio de prova fosse adotado para comprovar a embriaguez, o cidadão teve o seu “direito à inércia” cerceado, ou seja, ao invés de ser do cidadão a opção de não realizar qualquer prova contra si mesmo, a nova lei acabou jogando em seu colo a obrigação de realizar algum dos exames, sob pena de ser considerado embriagado em função da existência aparente de “sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração de capacidade psicomotora”. Houve, pois, verdadeira inversão do direito constitucional ao silêncio. Fatalmente, caberá ao augusto STF, guardião da Constituição Federal, decidir a respeito.

Contudo, é bom que se diga que, recentemente, muitas decisões judiciais têm declarado a absolvição de supostos “motoristas embriagados” justamente porque as autoridades, preocupadas unicamente em fazer a prova da embriaguez, não têm se ocupado em comprovar que o motorista apresentava a “capacidade psicomotora alterada”. Nesse sentido, vale mencionar que o TJ-RS, por reiteradas vezes, já tem decidido que o “tipo já não se realiza pelo simples fato de o condutor estar com uma determinada concentração de álcool no sangue e sim, por ele ter a capacidade psicomotora alterada em razão da influência do álcool, seja ela qual for”.

Apesar do endurecimento da legislação, o caput do novo artigo 306, do CTB, deixou claro que, apesar da constatação da embriaguez, o tipo penal só se aperfeiçoa mediante a efetiva comprovação de que o agente se encontrava “com a capacidade psicomotora alterada.”

Desta forma, ainda que a autoridade entenda existir os tais “sinais” de embriaguez ou mesmo que a taxa de alcoolemia no sangue/ar expelido pelos pulmões esteja acima do permitido, é preciso também comprovar a alteração psicomotora do motorista. E, por óbvio, tal circunstância não pode ser presumida. Cabe à autoridade comprová-la, concretamente. Tal necessidade assemelha o novo tipo penal à antiga redação original do artigo 306, já que, ao menos sob esse enfoque, o tipo penal voltou a ser de “perigo concreto”.

Em outras palavras, em que pese o esforço do legislador para punir o motorista embriagado com maior rigor, cabe agora ao Estado comprovar, além da embriaguez, também a alteração psicomotora do condutor. O exame clínico (ou seja, a observação e anotação do comportamento do motorista, em ficha própria, segundo orientações do Contran), dentro desse contexto, passará a ter papel vital na comprovação do crime, já que é o meio mais eficiente de que dispõe o Poder Público para aferir a efetiva alteração psicomotora do motorista.

Ou seja, para que fique bem claro, uma situação é ser flagrado na condução de um veículo automotor sob o efeito de álcool, outra, bem diferente e igualmente necessária à caracterização do crime, é que, em razão do álcool ingerido, o motorista apresente “capacidade psicomotora alterada”. Sem as duas condições, o fato não poderá ser considerado penalmente típico.

* Euro Bento Maciel Filho é advogado criminalista, mestre em Direto Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e sócio do Escritório Euro Filho Advogados Associados - eurofilho@eurofilho.adv.br

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