Sandra Franco*
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil é o único país com um Sistema Universal de Saúde, no qual o gasto privado é maior do que o público, sendo que o número de usuários do sistema público continua superior ao privado.
Vale ressaltar também que muitos usuários do sistema privado buscam no público os tratamentos complexos, mais caros e não cobertos pelos planos de saúde. Tal cenário pode justificar a crescente necessidade de ações judiciais para que os cidadãos alcancem o acesso integral (e universal) aos médicos, leitos e medicamentos, uma vez que os recursos destinados à saúde não conseguem suprir a demanda.
Em razão da estrutura viciada da gestão de dinheiro público, pela qual se aplicam mal os recursos existentes e se elegem políticas públicas equivocadas, não é pouco comum que “falte” dinheiro para à saúde, sendo evidente que os entes (Município, Estado e Federação) desenvolveram uma cultura de aguardar as ordens judiciais para agir. Ora, desta forma, amplia-se a gritante afronta ao artigo 196 da Constituição Federal, o qual dispõe que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença.
Sem dúvida, não há espaço para políticas públicas preventivas, que tenham como objetivo evitar a doença, quando se prestigia o acesso às ações e serviços (especialmente para recuperação da saúde) pela via judicial. Discute-se que o planejamento e orçamento da saúde devam compatibilizar as necessidades da política de saúde com as disponibilidades de recursos em planos de saúde – artigo 36, da Lei 8.080/90.
Deve-se ampliar a lente para onde é possível a interferência do Direito para que seja mantida a cobertura universal de saúde. Deve ser atribuição do Direito preservar todas as conquistas dos direitos sociais, especialmente o da saúde?
Em recente encontro promovido pela Comissão de Direito da Saúde da OAB de São José dos Campos (SP), juristas, profissionais da Saúde e representantes do poder Executivo realizaram amplo debate acerca de aspectos da Judicialização da Saúde. A partir de duas palestras complementares e antagônicas buscou-se a reflexão sobre o que deva ser priorizado pelo gestor público: os recursos devem ser utilizados para tratamentos que envolvam uma minoria de pacientes, por exemplo, com síndromes raras com custo de R$ 100 mil por mês ou os escassos recursos devem ser destinados ao atendimento, por exemplo, de centenas pacientes com hipertensão? É possível mensurar qual vida vale mais? Não se acaba por prover a justiça de forma injusta? Cabe aos judiciário a decisão de como usar o dinheiro público?
Inconteste que a incorporação de tecnologia crescente e onerosa contribui para essa escassez de recursos. Nunca haverá recurso suficiente para o financiamento da saúde, seja no Brasil ou em qualquer parte do mundo. O aumento dos custos é constante e crescente. Mais e mais doenças apresentam hoje tratamentos caros os quais, na maioria das vezes, são garantidos aos cidadãos pelas mãos dos juízes. Muitas vezes a concessão de tutela é desnecessária de fato, por haver outras formas de controle de controle da doença, menos onerosas, mas, que o magistrado não apresenta condições técnicas para discernir se de fato poderia o sistema de saúde privado ou o público prover, sem o comprometimento de seu plano de saúde anual e provisões para as sinistralidades, em se tratando de saúde privada.
Daí que o próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ) preconiza, por meio da Recomendação 31, a adoção de medidas para subsidiar os magistrados a fim de garantir maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde. Poderiam, de imediato ser respondidos questionamentos como se a terapêutica prescrita pelo profissional público está em conformidade com os protocolos e demais regramentos técnicos e científicos. Outro ponto importante, em se tratando de saúde suplementar, e responder se o procedimento teve cobertura negada indevidamente, se o procedimento está no rol da ANS, se o pedido para uso de órtese ou prótese importadas poderia ser substituídas por nacionais, enfim. Tal diretriz ainda não se tornou uma regra e, por ora, é um facultativo dos Tribunais, certamente a um custo imediato e a longo prazo que justificaria a criação de varas especiais de saúde.
A ratificar esse entendimento, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa expressou o pensamento da Corte Superior: “No Brasil, a desigualdade no campo da saúde é tão expressiva, que se tornou imperativo para o Poder Judiciário atuar com bastante rigor e precisão para impedir que o fosso entre os cidadãos se alargue ainda mais”. No entanto, também reconheceu que, diante das limitações orçamentárias, não se pode impor ao Estado a responsabilidade pela concessão ilimitada de tratamentos e medicamentos.
A integralidade da assistência não é um direito a ser satisfeito de maneira aleatória, conforme exigências individuais do cidadão ou de acordo com a vontade do dirigente da saúde, mas sim o resultado do plano de saúde que, por sua vez, deve ser a consequência de um planejamento que leve em conta a epidemiologia e a organização de serviços e conjugue as necessidades da saúde com as disponibilidades de recursos. Além da necessária observação do que ficou decidido nas comissões intergovernamentais trilaterais ou bilaterais, que não contrariem a lei.
A questão que incomoda os cidadãos - e impede que sejam aceitos argumentos como o da ‘reserva do possível’, da impossibilidade do controle dos atos administrativos de mérito pelo Judiciário - está em notícias sempre presentes na mídia. Por exemplo, desvio de verbas, superfaturamento de obras, faturamento indevido de procedimentos junto ao SUS, como de um paciente atendido 201 vezes no mesmo dia, em uma clínica do Piauí. No mesmo local foram cobrados tratamentos em nome de mortos. Estima-se que nos últimos cinco anos, cerca de R$ 502 milhões de recursos públicos do SUS, foram aplicados irregularmente por prefeituras, governos e instituições públicas e particulares.
Diante disso, como o Poder Judiciário pode decidir os pleitos que lhe são feitos diariamente? Como cidadão bem informado, é possível afirmar que não há dinheiro para o Poder Executivo cumprir suas obrigações? Por ora, sem dúvida, sem a Justiça não há a garantia do direito à Saúde.
* Sandra Franco é consultora jurídica especializada em direito médico e da saúde, é presidente da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico-Hospitalar da OAB de São José dos Campos (SP), presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde e vice-presidente na Associação Latino Americana de Direito Médico –drasandra@sfraconsultoria.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário