A maioria dos seres humanos tem uma visão controvertida do direito. Amiúde se apresenta a perplexidade ante a atuação de advogados criminalistas, sobretudo nos casos midiáticos. Como defender alguém, indaga-se, exposto na telinha, nas dependências de uma delegacia, depois de confessar um crime. Poucos têm olhos clínicos para observar as características físicas e o comportamento psicológico dos acusados. Há um bom número desses rebotalhos humanos que são absolvidos. Sem notícias de sua inocência, sem lenço nem documento, a perambular pelas ruas cruentas às quais foram devolvidos a título de "reinserção social", após terem frequentado os cursos do crime; cujas vítimas seremos nós, cidadãos virtuosos, mas omissos.
O exemplo visa animar uma ligeira reflexão sobre o direito. Uma antiga tribo chinesa acalentava a crença de que a primeira inclinação do homem bom era o direito. Depois vinha a música. Narra-a Jorge Luis Borges, sem, contudo, ter penetrado no âmago das razões daqueles primevos orientais.
Dois seres humanos em sociedade já reclamam parâmetros de logica jurídica, que os auxiliem na obtenção do consenso ou na prevenção ou repressão de lítígios inafastáveis de nossa luta interminável pela sociabilidade amorosa. Talvez conscientes disso se movia aquela tribo chinesa primordial: só depois de conciliados podemos fazer ecoar uma bela melodia. A orquestra é harmonia de sons, de espíritos e vontades.
A textura do direito já ensejou textos alentados. Aqui segue apenas um exemplo, para promover o interesse. É o da "competência". Sentido jurídico e não usual. Para aplicar o direito, o Estado se vale de sua jurisdição. No mundo moderno, é impossível um único órgão "dar a cada um aquilo que é seu", como o faziam os reis, sem grandes preocupações com o justo. O Judiciário dos povos civilizados está desenhado em competências jurisdicionais. Um conflito entre vizinhos, em regra, será resolvido pelo juiz do distrito; uma ação que envolva o Presidente da República pelo Supremo Tribunal Federal. A Constituição e as leis definem previamente essas competências. Incompetente, o juiz só poderá agir minimamente em casos de urgência. Quanto ao pano de fundo, se insistir, proferirá uma decisão nula, inócua.
Sobre os romanos, incríveis criadores do direito, pesa o crime da crucificação. Poucos sabem que, pelas leis romanas, Pôncio Pilatos não tinha competência para impor a pena de morte. Esta cabia ao povo (como a nosso Tribunal do Júri, em certos casos); ao povo irmão de Cristo da Judeia, que, havia uma semana antes, com ele desfilara por Jerusalém numa festa de ramos verdes. Em uma semana o grupo mudou de opinião, provavelmente chantageado pela ira dos vendilhões expulsos do templo. Os soldados romanos cuidaram de executar o sacrifício imposto ao filho de Deus. Sem dó nem piedade; até hoje, assim agem os "agentes da lei", em qualquer parte do mundo. Porém, regras eram regras num mundo essencialmente jurídico, cujo descumprimento importava em sérias consequências. Uma delas obrigavam os soldados a oferecer ao crucificado um copo de vinho tinto misturado com suco de papoula, para mitigar a dor da morte. O Pai não afastou o cálice e o Filho deve ter sofrido menos na hora derradeira.
Mal ou bem, era o império da lei. O Brasil vive problemas imensos. Em nosso modo de ver, o mais importante está no desfibramento da textura do direito, antes mesmo da educação e da saúde. Estas são utópicas, à falta de normas jurídicas efetivas e rigorosamente observadas. Os descalabros da saúde e da educação, que presenciamos diariamente, tem como raíz a síncope do direito e a propensão popular a não lhe dar importância. Resultado: terra de ninguém, chamada de país da impunidade, sob o paradoxo de tribunais enfartados de trabalho, sempre voltados ao passado e quase nunca tendo seus componentes no papel de agentes proativos do presente.Os olhos sempre fixos no retrovisor. A metáfora é precisamente essa: uma terra arrasada.Acabo crendo na lenda dos primitivos aldeões chineses.
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