sexta-feira, 31 de maio de 2013

Família de mudança vende tudo...

Camões Filho

     Mudança é coisa complicada. Digo mudança de endereço, de casa, não mudança de cabeça, de idéias, de paradigma. Imagine você, amanhã, tendo que empacotar todas as suas coisas, pôr num caminhão e mudar para um novo endereço. É uma coisa bastante estressante.
     Passei por tal situação poucas vezes na minha vida, felizmente. Numa delas, há muitos anos, como na velha canção, deixei tudo para trás, só levando meus livros, meus discos e nada mais. Um disco do Pixinguinha, a coleção do Pasquim e lá fui eu começar tudo de novo.
     Numa segunda vez tive que passar novamente pela situação de mudança. Aquele momento de juntar os badulaques, perscrutar aquele local, onde viveu momentos importantes, com olhos de adeus e de nunca mais. Ou pelo menos de que nada mais será como antes. Sair, fechar a porta e, como no poema do Vinicius de Moraes, partir com os adeuses em suas mãos.
     A solidão da mudança mexe com nosso espírito. Quando leio nos jornais aqueles anúncios classificados tipo “Família de mudança vende tudo”, sinto-me triste. Afinal, é gente deixando para trás sonhos, expectativas, esperanças, tudo que foi construído ou acumulado ao longo de toda uma vida, de repente passa para as mãos de pessoas desconhecidas. Gente que vai levar um pedaço nosso, coisas às vezes simples, sem valor material, mas que representam a nossa história, aquelas tralhas que fomos acumulando com o passar do tempo nesse quebra-cabeças chamado vida.
     Li há algum tempo o que escreveu Martha Medeiros – jornalista e escritora, colunista do jornal O Globo – sobre essa necessidade de mudança. Dizia ela ter encontrado no mural do colégio de sua filha um cartaz escrito por uma mãe, avisando que estava vendendo tudo o que ela tinha em casa, pois a família voltaria a morar nos Estados Unidos. O cartaz dava o endereço do bazar para venda de suas coisas e o horário de atendimento. Uma outra mãe, ao seu lado, comentou: “Que coisa triste, ter que vender tudo que se tem”. Martha conta então que respondeu:
     “Não é não. Já passei por isso, e é uma lição de vida. Morei uma época no Chile e, na hora de voltar ao Brasil, trouxe comigo apenas umas poucas gravuras, uns livros e uns tapetes. O resto, vendi tudo. E por tudo entenda-se: fogão, camas, louça, liquidificador, sala de jantar, aparelho de som; tudo o que compõe uma casa. Como eu não conhecia muita gente na cidade, meu marido anunciou o bazar no seu local de trabalho e esperamos sentados que alguém aparecesse. Sentados no chão. O sofá foi o primeiro que se foi. Às vezes, o interfone tocava às 11 da noite e era alguém que tinha ouvido comentar que ali estava se vendendo uma estante. Eu convidava pra subir e em dez minutos negociávamos um belo desconto. Além disso, eu sempre dava um abridor de vinho ou um saleiro de brinde, e lá se iam meus móveis e minhas bugigangas. Um troço maluco: estranhos entravam na minha casa e desfalcavam o meu lar, que a cada dia ficava mais nu, mais sem alma. No penúltimo dia, ficamos só com o colchão no chão, a geladeira e a tevê. No último, só com o colchão, que o zelador comprou e, compreensivo, topou esperar a gente ir embora antes de buscar. Ganhou de brinde os travesseiros. Guardo esses últimos dias no Chile como o momento da minha vida em que aprendi a irrelevância de quase tudo o que é material. Nunca mais me apeguei a nada que não tivesse valor afetivo. Deixei de lado o zelo excessivo por coisas que foram feitas apenas para se usar, e não para se amar. Hoje me desfaço com facilidade de objetos, enquanto que se torna cada vez mais difícil me afastar de pessoas que são ou foram importantes, não importa o tempo que estiveram presentes na minha vida. Desejo para essa mulher que está vendendo suas coisas para voltar aos Estados Unidos a mesma emoção que tive na minha última noite no Chile. Dormimos no mesmo colchão, eu, meu marido e minha filha, que na época tinha 2 anos de idade. As roupas já estavam guardadas nas malas. Fazia muito frio. Ao acordarmos, uma vizinha simpática nos ofereceu o café da manhã, já que não tínhamos nem uma  xícara em casa. Fomos embora carregando apenas o que havíamos vivido, levando as emoções todas: nenhuma recordação foi vendida ou entregue como brinde. Não pagamos excesso de bagagem e chegamos aqui com outro tipo de leveza. E lhes garanto: se só possuímos, realmente, na vida o que dela pudermos levar ao partir, é melhor refletir e começar a trabalhar o desapego já.”
     E você aí, já se desapegou das coisas materiais e transitórias de nossas vidas?


---------------------------

 Camões Filho, jornalista, escritor e pedagogo, pós-graduado em Jornalismo e Assessoria de Imprensa, é membro titular da Academia Taubateana de Letras.
E-mail para contato com o autor:  camoesfilho@bol.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário