'Millennium - Os homens que não amavam as mulheres'
Desde o momento em que a magnífica cena de abertura dos créditos iniciais de Millenium - Os homens que não amavam as mulheres (The girl with the dragon tattoo, no original) irrompe na tela ao som da poderosa batida do cover de Trent Reznor e Karen O (da banda Yeah Yeah Yeahs) para a canção Immigrant Song, de Led Zeppelin, não é difícil perceber que você está assistindo a um típico filme de David Fincher. Cheia de imagens sombrias – envolvendo um líquido negro que remete ao lodo primordial, de onde, vagarosamente, emergem personagens e detalhes da trama do filme – a sequência deixa claro que os temas que virão a seguir não serão leves ou de fácil assimilação.
Dono de um estilo técnico e visual único de contar histórias, o diretor de obras-primas como Seven e Clube da luta foi a escolha perfeita para esta brilhante adaptação de língua inglesa (uma produção sueca já havia sido realizada em 2009) do primeiro livro da trilogia Millenium (lançado com o mesmo título no Brasil pela editora Companhia Das Letras), do falecido escritor e jornalista sueco Stieg Larsson.
No centro da trama, está aquele que é provavelmente o elemento principal da trilogia e do interesse que esta tem despertado em milhões de leitores e cinéfilos ao redor do mundo: Lisbeth Salander. A heroína, se é que uma definição tão simplista e unidimensional faz jus à personagem, é a espinha dorsal do filme. Interpretada com talento pela atriz Rooney Mara (vista nas telas recentemente, em uma rápida aparição no filme A rede social, também de Fincher), a personagem ganha nuances e tons de complexidade que a tornam uma espécie de esfinge a ser decifrada.
Lisbeth é uma hacker capaz de descobrir informações acerca de qualquer indivíduo
Hacker brilhante e dotada de uma inteligência assustadora que a torna capaz de descobrir informações acerca de qualquer indivíduo, Lisbeth une forças ao jornalista investigativo Mikael Blomkvist (Daniel Craig, másculo e expressivo) na procura por uma resposta do enigma envolvendo o desaparecimento da jovem Harriet Vanger, sobrinha do magnata Henrik Vanger (Christopher Plummer, veterano sempre competente), quando essa era apenas uma adolescente de 16 anos, na década de 60.
Esbarrando em uma série de assassinatos de mulheres cometidos há anos na região rural da Suécia, os protagonistas começam a perceber que, possivelmente, estes estejam ligados ao desaparecimento de Harriet e à estranha e misteriosa família Vanger. Completando o elenco, estão nomes de peso como Stellan Skarsgård (no papel do empresário Martin Vanger), Goran Visnjic (como Dragan Armansky, diretor da empresa de segurança Milton Security, e chefe afetuoso de Lisbeth), Joely Richardson (como Anita Vanger), e Robin Wright (como a jornalista e amante casual de Mikael, Erika Berger).
Diferente da adaptação sueca – que mudou razoavelmente a caracterização dos personagens principais, além de cortar o sensacional desfecho da trama que se desenrola na Suíça – esta mantém-se bastante fiel ao livro e vai agradar tanto aos iniciados quanto aos leigos. Claro que mudanças em relação à obra literária também ocorreram, mas aqui, graças ao roteiro eficiente de Steven Zaillian, elas surgem de forma mais orgânica e verossímil. O forte laço de amizade e confiança que se estabelece entre Lisbeth e Mikael também é desenvolvido de forma mais natural e menos forçada se comparado a produção sueca, onde a relação parecia um tanto quanto apressada e artificial. A relação paternal entre Salander e seu primeiro tutor, Holger Palmgren (incapacitado no início da história devido a um derrame cerebral), também recebe mais espaço nesta versão e serve para mostrar um lado sensível e afetuoso da personagem.
Lisbeth (Rooney Mara) une forças ao jornalista investigativo Mikael Blomkvist (Daniel Craig)
Neste Millennium - Os homens..., Fincher investe em uma atmosfera que mistura melancolia (e perceba como o diretor de fotografia Jeff Cronenweth usa e abusa dos tons frios da paisagem invernal da Suécia) e total urgência, já que a sensação de que coisas terríveis estão prestes a acontecer (e, de fato, acontecem) está sempre presente durante toda a projeção. Neste sentido, a excelente trilha sonora da dupla de compositores Trent Reznor e Atticus Ross (ganhadores do Oscar por A rede social) é o toque final para construir o clima de tensão. Ainda assim, mesmo com uma trama forte e que prende a atenção do início ao fim, o grande destaque do filme acaba sendo o embate de Lisbeth com os homens de índole duvidosa que esta encontra pelo caminho. Dona de um passado violento e repleto de segredos, Salander surge como um anjo vingador em nome de todas as mulheres que algum dia sofreram nas mãos de um algoz masculino com más intenções. Criaturas repugnantes como o tutor legal da moça, o sádico advogado Nils Bjurman (Yorick Van Wageningen).
De acordo com a viúva de Stieg Larsson, Eva Gabrielsson, o escritor teria testemunhado o estupro coletivo de uma jovem quando este ainda era apenas um adolescente de 14 anos. Sentindo-se culpado por não ter ajudado a jovem de alguma forma, o autor, anos mais tarde, viria a exorcizar o sentimento de culpa criando uma personagem que, pelo menos na ficção, realizaria sua justiça (ou vingança, se preferir), além de servir como ferramenta alegórica de denúncia ao machismo e a violência contra a mulher, ainda tão presentes nas sociedades modernas. O nome da jovem que sofreu o abuso testemunhado por Larsson? Lisbeth.
Cotação: **** (Excelente)
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