Camões Filho
Para a minha querida cidade de Taubaté, que neste dia 5 de dezembro
comemora 367 anos.
Taubaté conta hoje com mais de 180 mil veículos. É muito carro para uma
cidade tricentenária, com ruas estreitas, um trânsito caótico, ruas centrais
apertadas e sem calçadas adequadas, com uma população de 300 mil pessoas que se
espremem como podem.
Além da falta de visão e planejamento de nossas autoridades, alia-se o
fato de que Taubaté experimentou um crescimento assustador há trinta, quarenta
anos.
Quando era garoto, o bairro onde morava, a Vila São José, não tinha uma
rua sequer asfaltada. A primeira via a receber asfalto foi a nossa, a antiga
Rua 2, hoje Professor Bernardino Querido, graças a uma iniciativa do Sr. Justo
dos Santos, que era nosso vizinho. Ele era presidente de um clube de futebol, o
Nova América, pessoa muito querida no bairro, e saiu batendo de porta em porta,
com um abaixo-assinado, para que a nossa rua fosse asfaltada. Lembro-me que os
moradores, a esmagadora maioria trabalhadores de baixa renda, como meu saudoso
pai, pagaram religiosamente pelo benefício em longas parcelas mensais.
Estávamos no final dos anos cinqüenta e, menino pobre, nem fiquei
sabendo que o Brasil, que havia perdido em casa a Copa do Mundo, tinha se
sagrado campeão do mundo pela primeira vez.
Estudava na escola na Casa do Menor de manhã. As tardes eram de
brincadeiras naquelas ruas descalças e poeirentas, por onde não passavam um
carro sequer. Em todo o bairro só um morador, Seu Cardoso, tinha carro, um
velho Ford Bigode, que mal saía da garagem.
À tardinha ao ouvir o tilintar de um sininho, algumas donas de casa
saíam no portão com uma caneca de ágata. Logo aparecia um senhor, cujo nome
minha memória perdeu ao longo dos anos, tocando umas trinta, quarenta cabras.
Ele parava no portão de cada freguês, ordenhava uma cabra, ofertando um leite
espumoso, que diziam curava até tuberculose, uma doença que grassava à época
naquelas vilas pobres, ceifando muitos pais de nossos coleguinhas.
Ele seguia tranqüilo com seu rebanho. Imagino essa cena nos dias de
hoje, na Taubaté de 180 mil carros. O caos seria tamanho que viraria manchete
no Jornal Nacional.
Tinha também o vendedor de quebra-queixo, de pães, o pipoqueiro, que
passava sempre às quatro horas, o homem do biju, com um latão cuja tampa era um
joguinho com pregos formando um tabuleiro. Se a roleta parava no número dois,
por exemplo, a gente comprava um biju e levava dois.
Uma vez por semana vinha um mascate, um turco que vendia lençóis,
colchas, toalhas. Foi dele que minha mãe comprou uma calça comprida preta – a
primeira, quando aposentei as calças curtas, que era à época um rito de
passagem – e uma impecável camisa branca, para a celebração de minha Primeira
Comunhão, que foi ali naquela capelinha da Avenida Faria Lima, que naquele
tempo chamava-se Cavarucangüera. Com trema e tudo, antes da reforma gramatical.
Havia também uma figura bastante popular, o amolador de facas e
tesouras. Ele se anunciava com uma gaita. Parava numa esquina, e as pessoas
chegavam com suas facas cegas. Vi muitas donas de casa de avental que tinham
suas facas amoladas e corriam pra cozinha, para fatiar a mistura do dia.
Ele vestia um paletó surrado, calças largas, camisa cáqui e precatas de
couro. Na cabeça um chapéu de abas caídas, que cobriam seu rosto, escondido
atrás de uma barba ralinha. Sua bicicleta era seu meio de transporte e sua
“oficina”. Com o pedal ele acionava uma tira de couro que fazia girar um
esmeril, onde ele afiava as facas assobiando uma antiga canção.
Taubaté era assim, gostosa como aquele pãozinho que o padeiro nos
trazia, ainda quentinho, numa época onde não havia padarias, carros nem maldade
naquele povo simples, mas feliz.
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Camões Filho, jornalista, escritor e
pedagogo, é membro titular da Academia Taubateana de Letras.
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